Imagina, fica à vontade, a casa é sua
O convite é conhecido, corriqueiro: fique à vontade. Em famílias de classes média e baixa, é comum ouvi-lo, símbolo da famosa hospitalidade brasileira. Mas como estar à vontade na casa de um rico colecionador que, enquanto viaja, abriga um jovem artista que não tem onde se hospedar? Seria possível não somente ocupar o espaço mas, de fato, habitá-lo? Essa é a premissa de “Imagina, fica à vontade, a casa é sua”, conjunto de trabalhos mais recentes de Marcus Deusdedit.
O trabalho do artista mineiro pode ser lido como um remix tridimensional. Artista com formação em arquitetura, Deusdedit reconfigura noções espaciais em seus trabalhos instalativos, tensionando relações de poder a partir de códigos de sociabilidade e consumo. A arquitetura e o design, linguagens com alto potencial e histórico de exclusão, são seus objetos de estudo e reflexão. Em sua pesquisa, o artista une símbolos de consumo periféricos - como os tênis de marca ou o alongamento de unhas - a móveis assinados por renomados profissionais da história do design, questionando o que podem corpos racializados em espaços como esses.
Em seu remix, Deusdedit utiliza os objetos como um músico trabalhando com samples: uma lace sentada na poltrona, um óculos de sol, a bermuda jogada na cama, os bonés, objetos posicionados de forma a entender o todo pela união das partes. As estruturas metálicas, vídeos e áudios funcionam como próteses coladas ao mobiliário, sugerindo a criação de um terceiro espaço, híbrido, já fora dos padrões de bom gosto das classes dominantes mas, ao mesmo tempo, ainda reconhecíveis: vemos os bancos e poltronas de Sérgio Rodrigues e as cadeiras de Oscar Niemeyer. Mas o que fazer com essa colagem disposta no espaço? Como dar conta do estranhamento provocado pelo artista e provar da experiência física que as instalações convidam?
A resposta não é simples ou linear. Valendo-se da ambiguidade e da ironia, o artista confabula a morte do colecionador na mesa de jantar enquanto distribui imagens de afeto familiar no aparador, sugere cenas de intimidade sexual nos quartos enquanto ouve-se uma festa na sala. O espaço vai sendo tomado, irreversivelmente profanado. Há traços, resquícios em todos os lugares. Ainda assim, isso não nos apazigua. A presença dos vestígios e aparatos não camufla - ou mais que isso, ressalta - a ausência dos corpos reais.
Deusdedit, tendo vivido em primeira mão a experiência de estudar arquitetura, um dos cursos mais elitistas do país, não se furta de citar o jogo racial e socioeconômico que permeia a permanência em espaços como o criado por ele na exposição. O apartamento fictício é a faculdade, a casa dos colegas ricos, os escritórios renomados, os museus, as feiras de arte, os grandes monumentos arquitetônicos. O colecionador são todos os contatos, a entrada por indicação, os diretores e gestores, os diplomados e suas assinaturas valiosas.
Fique à vontade. Mas lembre-se que não está.
Texto elaborado para a exposição Imagina, fica à vontade, a casa é sua, realizada na Diletante Galeria em agosto de 2024.