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  • Writer's pictureDaniele Queiroz

Nair Benedicto - Revista Morel

Escrevo esse texto como quem caminha a procura de algo. Afinal de contas, falar sobre as mulheres retratadas por Nair Benedicto, um dos maiores nomes da fotografia brasileira, é tentar descrever o mesmo farol que ilumina aquela que escreve.


A primeira imagem que me chega neste mapa imaginário é a figura da própria Nair, sempre em marcha. Lá está ela em passeatas, manifestações e reuniões de pessoas e ideias, o corpo inscrito no espaço público, fisica e simbolicamente. Ao longo de cinquenta anos de carreira, a fotógrafa comparece com sua câmera e nos convoca a participar ativamente das narrativas afetivas e políticas criadas neste país. Sigo suas pegadas e busco aprender com seus percursos, enquanto fabulo minha história a partir de algumas compreensões.


"O movimento das mulheres impulsionou vários outros importantíssimos."

Nair me dá de presente o que viria a ser minha bússola em nossa troca de emails, indica uma trilha por onde seguir. A continuação da frase, porém, me alerta: isso não é sobre mostrar e ver fotografias. Seria ingênuo - uma armadilha -, pensar que as imagens que vemos são apenas sobre a relação entre ver e ser vista. Igualmente ingênuo seria imaginar que, ao retratar mulheres, a conversa se restrinja a gênero ou fale unicamente sobre (e para) esses corpos.


Desvio feito, estamos na encruzilhada e em pleno campo aberto. Relembro a frase-bússola, ajusto meu mapa. É o movimento, feito pelas mulheres retratadas por Nair, que impulsiona vários outros. Dois pequenos percursos, generosamente, se oferecem:


O movimento. As mulheres retratadas por Nair, assim como a própria fotógrafa, estão sempre em movimento, no meio de algo, incansáveis. Mulheres e seus ofícios, ocupadas em afazeres, rituais e comunhões. Não há tempo ou interesse na musa petrificada, vista passivamente, nunca houve tempo para corpos dóceis. Estamos tratando de mulheres vistas enquanto realizam.


O impulso. Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, dizia Angela Davis. Sentimento parecido me acomete ao pensar nas personagens de Nair, mulheres que impulsionam a sociedade através do movimento, da ousadia e do desejo. Mulheres gozando, sorrindo, gritando, sussurrando, espalhando e contaminando de eros um país tomado por aqueles que desejam a morte.


Mas em toda trilha há sempre o que não está dito e apenas se insinua. Veja bem o que você está deixando de perceber, sopra Nair em nossas conversas imaginárias.


A recusa. Há, na trajetória de Nair, uma insistente recusa. A conveniência, a conivência, as normas e convenções que restringem direitos e liberdade, aquietam e domesticam os corpos: Nair e suas imagens recusam tudo isso. Não há negociação com o ‘estado atual das coisas’. Estamos tratando de uma fotógrafa que se recusou a aceitar a ditadura e usou das ferramentas disponíveis para combatê-la, arriscando a própria vida para tal. Igualmente, suas personagens se recusam a abandonar a rua, os bares, as esquinas, os

espaços de poder e de desejo.


Termino meu pequeno mapa com desenhos opacos, rabiscos de recusa que sustentam, por teimosia, o movimento e o impulso. Mas não é recomendável confiar neste mapa: colocar-se constantemente em marcha, como Nair, talvez seja mais apropriado.


Texto elaborado em junho de 2022, para a Revista Morel, com ensaio de Nair Benedicto.

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